Artigos > As cantigas de Santa Maria e o galaico-português
por Alexis Ulrich
Neste artigo, vou falar sobre as Cantigas de Santa Maria, que são canções religiosas do século XIII, escritas em galaico-português. Mas antes disso, pare que vocês possam saber do que se trata, vamos ouvir uma cantiga, a chamada «Como Deus fez vynno d’agua».
ben assi depois sa Madr’ acrecentou o o vinno.
Santa Maria por hûa dona mui sen sanna,
en que muito bon costum’ e muita bõa manna
Deus posera, que quis dela seer seu vezyo.
ben assi depois sa Madr’ acrecentou o o vinno.
era que muito fiava en Santa Maria;
e porende a tirou de vergonna un dia
del Rei, que a ssa casa vêera de camyo.
ben assi depois sa Madr’ acrecentou o o vinno.
e deu-lle carn’ e pescado e pan e cevada;
mas de bon vyo pera el era mui menguada,
ca non tîia senon pouco en un tonelcyo.
ave-lo, non era end’ en terra que podesse
por dîeiros nen por outr’ aver que por el desse
se non fosse pola Madre do Vell’ e Menîo.
ben assi depois sa Madr’ acrecentou o o vinno.
e diss’ “Ai, Santa Maria, ta mercee seja
que me saques daquesta vergonna tan sobeja;
se non, nunca vestirei ja mais lãa nen lyo.”
ben assi depois sa Madr’ acrecentou o o vinno.
e el Rei e ssa companna toda foi conprida
de bon vinn’, e a adega non en foi falida
que non achass’ y avond’ o riqu’ e o mesqyo.
ben assi depois sa Madr’ acrecentou o o vinno.
As Cantigas
Contexto histórico
Em 1139, Dom Afonso Henriques autoproclamou-se rei de Portugal após a batalha de Ourique contra os mouros, o que foi finalizado pelo tratado de Zamora em 1143. Estávamos na Idade Media, na época da Reconquista, e o Reino de Portugal está a iniciar-se à medida que se reconquistam territórios. Mas o rei ainda é o vassalo do rei de Castela e Leão, Dom Afonso VII, e vai o ficar até 1179, quando o Papa Alexandre II reconheçe-lhe o direito de lhe prestar vassalagem direta. O último episódio da reconquista portuguesa foi a inclusão da província do Algarve em 1249.
O Trovadorismo
O trovadorismo é o nome do movimento centrado no trovador, um poeta de origem nobre que compõe cantigas, ou seja poesias cantadas, e as melodias que as acompanham. As cantigas eram também interpretadas pelos jograis, pessoas que não pertenciam à nobreza (ou vilões). Estes eram artistas profissionais atuando nas praças públicas para divertir o público e também nos palácios senhoriais. Os trovadores cantavam na língua occitana no sul da atual França, e em galaico-português em Portugal e na Galiza.
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
vos direy, que fez a Virgem, Madre de Nostro Sennor,
per que tirou de gran falla a un mui falss’ amador,
que amyude cambiava seus amores dun en al.
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
hûas gentes ssa eigreja, e poren foran tirar
a majestad’ ende fora, que estava no altar,
e posérona na porta da praça, sso o portal.
ando feriss’ a pelota, foy buscar u o põer
podess’; e viu a omage tan fremosa parecer,
e foi-llo meter no dedo, dizend’: “Oi mais non m’enchal.
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
que nunca tan bela cousa viron estes ollos meus;
poren daqui adeante serei eu dos servos teus,
e est’ anel tan fremoso ti dou porend’ en sinal.”
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
mas da amiga primeira outra vez sse namorou,
e per prazer dos parentes logo con ela casou
e sabor do outro mundo leixou polo terreal.
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
deitou-ss’ o novio primeiro e tan toste ss’adormyu;
e el dormindo, en sonnos a Santa Maria vyu,
que o chamou mui sannuda: “Ai, meu falss’e mentiral!”
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
que ss’ergeu e foi ssa via, que non chamou dous nen tres
omêes que con el fossen; e per montes mais dun mes
andou, e an un’ hermida se meteu cab’ un pîal.
dos que ama é ceosa, ca non quer que façan mal.
As Cantigas de Santa Maria
Descrição
As Cantigas de Santa Maria são um conjunto de 427 composições em galaico-português, que no século XIII era a língua fundamental da lírica culta em Castela. Foram patrocinadas por Afonso X o Sábio, o rei de Castela e Leão de 1252 até 1284. Ele próprio escreveu algumas cantigas e compôs alguns acompanhamentos deste cancioneiro sobre os prodígios e milagres da Virgem.
Dividem-se em dois grupos: as Cantigas de Nossa Senhora, que são um conjunto de histórias e milagres, e as Cantigas de louvor e elogio, cujo número é múltiplo de dez, e que são mais semelhantes à hinos sagrados, poemas de reflexão sobre a Virgem. Na sua qualidade de mãe de Jesus, e com a sua figura humana mais perto de nós do que pode estar a Trindad, tem um papel de intercessão e perdoa os pecados.
Atualmente, as Cantigas encontram-se em quatro lugares: um manuscrito na Biblioteca Nacional da Espanha que fica em Toledo, um no Escorial, perto de Madrid, e dois em Florença, na Itália.
Conteúdo
O objetivo declarado do rei Afonso X fica no prólogo B:
E o que quero é dizer loor da Virgen, Madre de nostro Sennor… e por aquest seu quero seer oy máis seu trobador e rogó-lle que me queira por seu trobador e que queira meu trobar receber…
O que se pode traduzir por:
E o que quero é tecer louvores à Virgem, a Mãe do nosso Senhor… e por isto, só quero ser hoje o seu trovador, e rogo-lhe que me queira pelo seu trovador e que queira o meu trovar receber.
Além do proposito principal descrito por Afonso X nesse prólogo, as cantigas de Santa Maria eram uma maneira de fixar as diferentes versões das historias dos milagres para as distribuir melhor. Assim, o povo que não sabia ler nem escrever podia aprender os milagres na sua própria língua, o galaico-português, dado que nas igrejas era o latim que se usava.
Algumas cantigas têm origem nas experiências pessoais do rei, numa hagiografia disfarçada, na qual expressa a sua espiritualidade, o seu pensamento e a pessoa que queria ser. Por exemplo, na cantiga 300 (Muito devería óme sempr’ a loar), diz que «por ela vai trovar, e cuidando e buscando de que maneira a poderia honrar» (por ela vou trobar, e cuidando e buscando como a póssa onrrar).
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
mostrou a Virgen maravilla fera
dûa gran saetada que presera
en hûa lide forte sen medida.
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
pelo ollo, que logo llo britara
e ben ate eno toutiço entrara,
de guisa que lle non põyan vida.
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
ena Virgen e deu-xe-ll’ en comenda,
e a Salas prometeu offerenda
se el da chaga ouvesse guarida.
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
tirar do ollo, e en essa ora
guariu de todo logo sen demora,
des que a saeta en foi sayda,
que da saetada ren non sentia;
des i do ollo atan ben guaria
que ben com’ ante vira del viia.
E pera Salas fez logo sa ida,
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
Madre de Deus, Reyna poderosa,
que o sãara como piadosa.
E esta cousa foi mui lonj’ oyda
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
a Santa Maria loores deron
de Salas, e mui gran sabor ouveron
de fazer log’ a ela ssa vîida.
sãar pod’ om’ a de ben mui comprida.
Língua
Evolução das línguas
Na sua corte em Toledo, Afonso X reuniu cristãos, judeus e muçulmanos para traduzir textos da antiguidade. Além disso, realizou a primeira reforma ortográfica do castelhano, codificando a sua grafia. Assim, duplicou o n para render o sonido [nh], o que foi escrito pelos copistas com o ñ castelhano. Ele adoptou o castelhano como língua oficial em detrimento do latim.
O trovadorismo era importante na sua família: o seu neto, o rei Dinis 1° que reinou sobre Portugal entre 1279 e 1325, era também trovador. 137 cantigas dele chegaram à nossa época. Criou a primeira Universidade portuguesa, inicialmente em Lisboa, e depois transferida para Coimbra em 1308. Ali, ensinavam-se Artes, Direito Civil, Direito Canónico e Medicina.
Ele dou o nome português ao galaico-português que foi a partir de 1290 a língua da corte.
Com a divisão política de Portugal ao sul e da Galiza ao norte, o português e o galego evoluiram diferentemente. O português ganhou mais vocabulário do árabe, como por exemplo açucar («as-sukkar»), arroz («ar-ruz»), azeite («az-zait»)… e também nomes de lugares e regiões, como Algarve («Al-Gharb»), Alcântara («al-qantara», ponte, viaduto)…
Do seu lado, o galego castelhanizou-se e a partir do século XV, com a dominação castelhana, a língua galega perdando o seu uso nos registos oficiais, período que se chama os «Séculos Escuros» e que durou até quase a metade do século XIX.
O galego-português
Hoje em dia, na Galiza, há duas correntes linguísticas que são os reintegracionistas e os isolacionistas.
Os reintegracionistas consideram o galego e o português como uma única língua, separada pela história dos territórios, e querem modificar a ortografia galega para unir de novo as duas línguas. Eles chamam o galego galego-português.
Um subgrupo deles, os lusismos, quer seguir as regras ortografias do português no galego-português, enquanto outros desejam incluir essas mudanças de forma mais lenta. Os independentistas usam já a grafia reintegracionista desde 1985.
Pelos isolacionistas, representados pela Real Academia Galega, a instituição pública que promove a língua galega, o galego é uma língua por si própria.
Assim, a questão da língua é uma questão de identidade linguística, cultural e política ao mesmo tempo.
Continuum dialetal
O catalão, o aragonês, o castelhano, o galego-asturiano, a fala da Estremadura, o galego-português, o português… Todas essas línguas provêm do latim e têm semelhanças que as tornam até um certo ponto mutuamente inteligíveis ou intercompreensíveis.
Quando uma pessoa sabe algumas regras de mudanças de sons entre línguas e com um bocadinho de prática, podem-se ler todas as línguas da península ibérica, os diferentes ocitanos, o italiano oficial e todos os seus dialetos, até mesmo o romeno.
As fronteiras entre as línguas são artificiais para os que querem se emancipar delas.
Ligações
- Cantigas de Santa Maria for Singers (em inglês)